Na entrevista à Folha,o general
Villas Bôas disse como é ridículo discutir 1964 como se fosse um assunto atual,
porque “de 1964 para cá, se passaram 54 anos. Imagine se em 1954 estivessem
discutindo 1900”.O general ecoa o argumento da coluna De Hermes Bolsonaro a Getúlio
Lula, publicada por Mário Sabino em 31 de agosto, na Crusoé.
Eis a coluna na íntegra:
“Imagine você se, em 1964, os
brasileiros estivessem debatendo na imprensa o que ocorreu em 1910 e
adjacências, como se episódios datados de mais de meio século fossem
determinantes para definir os rumos do país a partir dali. A hipotética
discussão seria, provavelmente, sobre se a eleição do Marechal Hermes da
Fonseca foi fraudada ou não (todas as eleições na República Velha foram
fraudadas) e se ele não abusou nas sucessivas decretações de estado de sítio.
Não faria o menor sentido.
Esse tipo de debate extemporâneo
está acontecendo em 2018, quando insistem em voltar ao tema do regime militar
instaurado em 1964. Foi ditadura ou “ditabranda”? Roberto Marinho estava certo
ao apoiar o que chamava de “revolução” ou a razão está com os herdeiros que
fizeram um mea-culpa, em 2013, do que chamam de “golpe”? Não faz o menor
sentido para quem precisa desesperadamente de emprego, renda, transporte,
escolas e hospitais.
Alguém poderia rebater dizendo
que faz sentido, sim, porque há um candidato, Jair Bolsonaro, que defende os
generais de 1964 e, com a perda da confiança na democracia, por causa dos
escândalos de corrupção, há um monte de gente pregando a volta dos militares ao
poder. A minha resposta é simples: os militares sempre foram protagonistas da
história política, a confiança na democracia nunca foi muito arraigada entre os
brasileiros, mas eles parecem bem conformados com o sistema representativo — e,
não menos importante, o fato de um político admirar déspotas mais ou menos
esclarecidos não significa necessariamente que, uma vez eleito presidente, vá
dar um golpe na democracia. Pode ser preocupante num determinado caso, como se
verá.
Comecemos pelos militares. Não é
exatamente um segredo que a República foi proclamada no Brasil pela caserna, em
conluio com uma nascente classe média urbana e cafeicultores insatisfeitos com
a abolição da escravatura. Tanto que os dois primeiros presidentes foram
generais (Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto). Depois houve o já citado
Hermes da Fonseca, o movimento tenentista (do qual brotaram comunistas como o
do então capitão Luís Carlos Prestes), a junta governativa provisória que
precedeu Getúlio Vargas em 1930, o oficialato que deu suporte à instauração do
Estado Novo em 1937 (e seria responsável pelo fim da ditadura getulista), a
eleição de Eurico Gaspar Dutra em 1945, os generais do regime instaurado em
1964 e, agora, um capitão da reserva como candidato ao Planalto. O retrospecto
do pessoal da farda mostra que o seu comportamento é pendular, mas, desde a
redemocratização de 1985, ele está menos suscetível às vivandeiras que vão
bulir com os granadeiros nos bivaques. Prefere mandar recados – em especial, a
tribunais superiores que insistem em tentar contornar a Constituição. O que não
vem sendo ruim, diga-se.
Em relação à confiança na
democracia, se ela nunca se apresentou forte por aqui, é verdade também que aos
poucos os brasileiros estão se convencendo de que se trata do pior dos
sistemas, excetuados todos os outros já tentados na história da humanidade.
Pelo menos metade dos nossos concidadãos sabe que a maior ameaça à democracia
não está nos quartéis, e sim numa sala da Superintendência da Polícia Federal
no Paraná.
Por fim, a admiração por
déspotas. O que Jair Bolsonaro pensa sobre os generais de 1964 não é lá tão diferente
do que Fernando Henrique Cardoso pensa sobre o ditador Getúlio Vargas. Na
contracapa do segundo volume da biografia escrita por Lira Neto, está estampada
a seguinte frase de FHC: “Li quase de um fôlego só o primeiro volume do livro
de Lira Neto sobre Getúlio. É admirável seu rigor na busca dos fatos, na
abstenção de julgamentos morais e o desenrolar de um enredo que mostra o
itinerário humano, intelectual e político de um homem que, a despeito do que se
pense sobre suas ações e posições, teve a grandeza que só os estadistas
possuem”.
O trabalho de Lira Neto é
excelente, mas o que importa neste artigo é FHC julgar o ditador Getúlio Vargas
um “grande estadista”, a despeito de ter mandado prender, torturar e matar
opositores, fechado o Parlamento, promulgado uma Constituição de inspiração
fascista, mantido a imprensa sob censura férrea, empastelado redações de
jornais críticos ao regime, instituído o mais desavergonhado culto à
personalidade e criminalizado a política, ao considerá-la um impedimento ao progresso
da nação. Antes disso, como advogado, ajudou a proteger o seu irmão pedófilo.
Prezar o seu bom legado e desprezar o seu mau legado é, no mínimo, aceitar que
o fins justificam os meios. Aqueles que temem o revisionismo de Bolsonaro sobre
os horrores de 1964 deveriam considerar o que eles próprios fizeram em relação
aos horrores de Getúlio. Na Itália, seria inconcebível a existência de uma
“Fundação Benito Mussolini”, enquanto no Brasil ninguém acha espantoso uma
instituição respeitável chamar-se “Fundação Getúlio Vargas”. Não é de hoje que
não temos limites na “abstenção de julgamentos morais”. No entanto, FHC é uma
ameaça à democracia, por achar o ditador um “grande estadista”?
Logo abaixo do elogio de FHC,
lê-se a seguinte frase de Lula: “Poucas vezes vi alguém descrever tão bem a
história de Getúlio Vargas e do povo gaúcho como o Lira Neto na primeira parte
da sua trilogia. Foi tão impactante para mim que me vi andando com Getúlio,
fumando um charuto, pela Rua da Praia, em Porto Alegre”. Pode-se duvidar de que
o petista tenha realmente atravessado o livro, mas fica evidente o bovarismo de
Lula, decalcado da mentira martelada pela esquerda de que houve “dois
Getúlios”: o ditador e o presidente convertido à democracia, ao ser eleito em
1950.
Lula, que se viu “andando com
Getúlio”, quer fazer-se passar por democrata quando na verdade não é. As
tentativas do petista de solapar a democracia por dentro, a fim de perpetuar-se
no poder, foram elencadas por mim neste espaço e são do conhecimento de qualquer
pessoa informada sobre os últimos dezesseis anos da interminável tragicomédia
brasileira. Solapar a democracia por dentro foi exatamente o que Getúlio fez
até conseguir instaurar o Estado Novo – e que teria repetido, se pudesse,
depois de suceder Dutra por meio do voto. Mas ele já não contava com os
militares e os adversários aprenderam o seu jogo. Saiu da vida para entrar na
história, com um gesto que revela o seu narcisismo de déspota: o suicídio
acompanhado de “carta-testamento”. Gesto que propiciaria hagiologias
oportunistas e resultariam, em 2010, na iniciativa de Lula de inscrever Getúlio
Vargas no Livro dos Heróis da Pátria (uma autoinscrição bovarista). Desde
então, os petistas sentiram-se legitimados a comparar livremente as alegadas
virtudes de ambos – o que se acirrou, é claro, após a prisão do chefão
condenado. Os dois “pais dos pobres” seriam vítimas das “elites”, dos
“reacionários”, mentira que embasa a farsa da condenação sem provas do petista.Se
é para discutir acontecimentos de décadas atrás, eu recuaria até os anos
trinta. E ficaria mais preocupado com o bovarismo de Lula em relação a Getúlio
Vargas do que com os encômios de Jair Bolsonaro aos Hermes da Fonseca de 1964.”
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