O jornalismo político falhou em antecipar o tamanho do prejuízo para o kirchneirismo.Seja como for – e ressalvadas as notórias diferenças entre os governos Dilma Rousseff e Cristina Kirchner, muito menos contemporizador -,não apenas salta aos olhos a similaridade entre as práticas político-eleitorais nos dois países, mas entre a atitude, a estratégia e a argumentação dos setores midiáticos governistas brasileiros e argentinos em relação às respectivas eleições. A leitura, por exemplo, da cobertura que o outrora modelar Página 12 faz do pleito – escamoteando os graves defeitos do atual governo enquanto supervaloriza o tendenciosismo e a força da mídia e demoniza a classe média – parece demais, a um tempo, um déja vu e uma antecipação, respectivamente, dos diagnósticos e desculpas que os blogs e publicações petistas vêm fabulando sobre a presente crise do governo Dilma, e do tipo de argumentação a que certamente viriam a recorrer numa eventual derrota da candidatura Lula em 2018.Trinta anos depois daquele icônico comercial de vodca,Argentina e Brasil bisam a dinâmica do “Eu sou você amanhã” através da substituição da autocrítica, do debate franco e da apresentação de programas e desqualificação do opositor, transformado em inimigo – e os eleitores deste em propostas de ação, em prol do marketing político mais cosmético e da mera jugo ditatorial, ainda estão muito aquém do nível de práticas, propostas e acéfalos e ingratos. Evidência de que, se os dois países evoluíram ao superar o comprometimento que a verdadeira evolução democrática demanda.***Mauricio Caleiro é jornalista e doutor em Comunicação pela UFF Em busca de explicações Passada a surpresa e, como de praxe, sem redimir-se de sua
pontaria, os analistas começaram a produzir explicações para o fenômeno. No
cada vez mais governista Página 12, em um artigo significativamente intitulado
“A vingança dos portenhos”, o colunista Luis Bruschtein formulou uma tese que
se tornaria corrente entre os partidários de Scioli:“Uma força política de portenhos de classe alta se impôs ao
peronismo de trabalhadores e classe média baixa na província de Buenos Aires e
conseguiu uma marca invejável em nível nacional. (…)Houve nesta eleição um voto conservador que proveio de
setores populares que ganharam em qualidade de vida durante esses anos, [voto]
que também saiu de minorias sexuais ou de gênero que foram beneficiados por
este governo, um voto que seduziu a grande quantidade de comerciantes e
empresários que prosperaram de forma considerável nestes doze anos. Camadas
médias que foram resgatadas da extinção por esse governo se voltaram para esse
discurso que esconde as velhas politicas que as levaram à beira do precipício.
Há um gesto de autoflagelação nesses setores seduzidos por um flautista de
Hamelin que disse na campanha que estava de acordo com todas as medidas que
votou contra.”Como Bruschtein não explica por que razões a classe
trabalhadora e as camadas médias se deixariam conduzir pela elite portenha,
fica, além da concepção destas como politicamente acéfalas, incapazes de pensar
e decidir por si próprias – e, portanto, à mercê do cabresto dos poderosos -, a
impressão de que a explicação não passa de wishful thinking do jornalista.
Agrava tal sensação a atenção nula que ele presta à hipótese, mais provável e
passível de ser comprovada em dados oficiais, de que o agravamento da crise
econômica durante o segundo governo de Cristina Kirchner teria afetado
sobremaneira tais estratos sociais, corroendo, ao menos em parte, as melhorias
que o próprio kirchnerismo anteriormente lhes proporcionara.
Fantasmas do passado Na batalha entre as duas campanhas, ora intensa, chama a
atenção, na estratégia do candidato do governo, o misto de artificialismo da
polarização e ausência de relativização temporal: por um lado, fazendo uso de
um “esquecimento do presente”, procura-se abstrair tanto a crise do país sob o
kirchenirsmo, eternizado como benéfico e provedor, quanto o perfil
intelectualmente deficitário e consideravelmente conservador de Scioli
(candidato que, como reconhece o mais midiático dos historiadores argentinos, o
kirchnerista Felipe Pigna, “está mais para a centro-direita dentro do
peronismo”).Por outro, a estratégia que vem sendo aplicada para criticar
o candidato conservador não deixa de mostrar-se problemática: “Macri é a cara
remoçada do menemismo”, define a crítica literária Adriana Persico, aludindo à
combinação de insensibilidade social neoliberal e corrupção desmedida que
caracterizou o período em que Carlos Saúl Menem habitou a Casa Rosada
(1989-1999). “Cada cidadão tem a obrigação e a enorme responsabilidade de
colocar sua memória a funcionar e decidir se quer voltar a esses terríveis velhos
tempos”, prossegue ela.Não obstante a justeza do alerta, a evocação dos fantasmas
do passado, numa campanha conflagrada ao extremo, tem com frequência
caracterizado Macri como uma retomada ipsis litteris do menemismo, Menem
redivivo. Nesse sentido, Pigna é taxativo: para ele, o candidato representa
“uma volta aos anos 90”, ideia que vem sendo martelada à exaustão pela campanha
governista, sem qualquer ponderação ou relativização. Soa, assim, como se tal
força política se tivesse mantido intacta por 16 anos, sem modificações ou
nuances; a Argentina e o mundo dos anos 90 fossem idênticos aos de hoje, e a
eleição do candidato da “Mudemos” significasse tão somente um resgate das
políticas que Menem adotou durante seus dois mandatos, legando aos argentinos
anos de caos econômico e debacle social.
Profetas do caos Configura-se, desse modo, um cenário radicalizado, que o
jornalista Juan Pablo Csipka, após elencar graves problemas tanto da
administração Macri quanto do governo Scioli, declarar voto em branco e
criticar a “demonização total e absoluta” contra Macri, assim resume:
“Por um lado, a extrema idealização, se não de Scioli, ao
menos do kirchnerismo. Por outro, uma vertente, vamos chamá-la de nacional e
popular, de certo gosto amargo característico dos anos de fúria do menemismo
(por exemplo, a campanha de 1995): “Somos nós ou o caos”. Nem tanto ao mar, nem
tanto à terra: nem Scioli nem o kirchnerismo são, a esta altura, alternativas
antagônicas ao que pode fazer Macri [no poder].Ao final trata-se, em um e outro caso, de “Disseminar medo
massivo porque oh, existe a possibilidade de alternância de poder”, ironiza, no
Facebook, a escritora argentina Pola Olixarac, autora do celebrado “As teorias
selvagens” (Benvirá, 2011).
Tática do espantalho Nós, brasileiros, já vimos esse filme. A referida tentativa
de tornar indistinguíveis Macri e Menem, por exemplo, guarda evidente
similaridade com os esforços do marketing governista para tornar indistintos
Aécio Neves e Fernando Henrique Cardoso, como se, 20 anos depois, o primeiro
fosse reeditar o mesmíssimo governo do segundo – e com a mesma tragédia social
resultante. A candidatura Dilma, por sua vez, à semelhança do que hoje a
campanha de Scioli faz em relação ao kirchnerismo, dissimulou a crise que os economistas
já então diagnosticavam encarnando uma versão idealizada do petismo no poder –
reforçada por comerciais que vendiam um país paradisíaco, de comercial de
margarina -, valendo-se assim, como no caso argentino, de um discurso do tipo
“nós ou o caos”. Tática que serviu tanto para reverter a ascensão de Marina
Silva e – ao bradar que ela tiraria comida da mesa do trabalhador para aumentar
os lucros do Itaú – tirá-la do primeiro turno, quanto para fixar a ideia de que
o candidato tucano promoveria um ajuste fiscal de inspiração neoliberal.
Dilma vitoriosa, o resultado, é forçoso notar, é que o tal
ajuste ortodoxo, agora a cargo de Levy, tem imposto cortes profundos no
Orçamento do país, com graves consequências para Educação e Saúde; e que o Itaú
(assim como o Bradesco do conselheiro Trabuco) tem anunciado recordes
sucessivos de lucro enquanto o desemprego atinge mais de um milhão de
trabalhadores desde o início do ano. Pesquisas indicam que essa distância entre
o prometido e o cumprido – que alguns chamam de estelionato eleitoral – está no
cerne da perda de confiança popular no governo Dilma, expressada nos 70% que,
segundo o Ibope, hoje consideram seu governo ruim ou péssimo. Se o efeito
Orloff ainda vigora, fica o alerta aos candidatos argentinos.Tudo somado, tanto o desencanto popular com o governo Dilma
quanto a reviravolta nas eleições argentinas parecem apontar para “a falência
de um modelo de campanha eleitoral, extensamente usado pelo governismo
brasileiro também: a política do “boogeyman” , do “cuco”, como dizemos em
espanhol ou, em bom português, a política do espantalho”, aponta Idelber
Avelar, professor do Stone Center for Latin American Studies da Tulane
University (EUA). “É a política limitada à demonização do adversário”, critica,
arriscando um prognóstico: “Deu certo por pouco, muito pouco no Brasil 2014,
graças à campanha mais suja da História. Não deu certo no primeiro turno
argentino de 2015 e, pelo jeito, não dará certo no segundo. Não dará certo no
Brasil-2018”.