Por Beatriz Castilho Daniel
Sem sombra de dúvidas, a criação do Instituto da Antecipação
da Tutela, ora modificado pela lei 8.952/94, trouxe nova redação para o artigo
273 do Código de Processo Civil, constituindo umas das grandes inovações para o
processo civil brasileiro, tornando o processo mais célere e efetivo.
A guisa da reforma de 1994, nos dias atuais encontramos no
cenário jurídico brasileiro, um número infindável de decisões jurisprudenciais,
calcadas na aplicação do princípio da razoabilidade, o qual vêm adquirindo
grande importância no âmbito doutrinário e jurisprudencial pátrio.
Sua inquestionável relevância, torna o estudo da
razoabilidade ainda mais importante, inclusive, o referido princípio é citado
no famoso romance KAFKANIANO (1998), escrito por volta de 1914, que por sua
vez, se mostra como uma obra-prima do gênio de Kafka, representando um dos
maiores romances já escritos em todos os tempos.
Em sua narrativa, encontramos a história de Josef K. o seu
ponto chave, o protagonista de O Processo, narra toda a trama sem descobrir a
razão de seu infortúnio, quem o acusa, e qual a acusação que lhe pesa sobre a
cabeça. Em síntese, sabe-se da existência da acusação, mas não de seu conteúdo,
e muito menos de seu autor.
O Poder Público, no caso o Judiciário, figura no romance
como um enorme Leviatã, e ao longo da narrativa deste romance, o autor deixa
claro, o fato de que todo o procedimento judicial ao qual submete-se Josef K.
Entretanto, o princípio da razoabilidade, apesar de não
constar, na real acepção da palavra, na grande maioria dos ordenamentos
jurídicos, ganhou importância nos países ocidentais neste particular,
influenciados por países como os Estados Unidos, que o reconhecem expressamente
através das emendas números 05 e 14 à Constituição Federal.
Vale consignar que, a utilização da razoabilidade somente
era admitida para correção dos defeitos de ordem processual (procedural due
process), de qualquer forma, não era atribuído ao Judiciário investigar os
critérios de atuação do Legislativo, exatamente pela forte concepção da
separação e autonomia dos Poderes, conforme menciona o Professor Barroso: “A
primeira versão do due process, como se disse, teve ênfase processual, com
expressa rejeição de qualquer conotação substantiva que permitisse ao
Judiciário examinar o caráter injusto ou arbitrário do ato Legislativo.
Tratava-se, inicialmente, de uma garantia voltada para a regularidade do
processo penal, depois estendida ao processo civil e ao processo
administrativo”.
Contudo, não mais se mostrou possível somente à aplicação da
razoabilidade como forma de conceber as partes o direito de regularidade
processual, sendo que por diversas vezes surgiam questionamentos a respeito da
razoabilidade dos meios e fins utilizados pelo legislador.
No direito brasileiro, o princípio da razoabilidade acha-se
de forma implícita no texto constitucional, quando se assegura aos
jurisdicionados o direito ao devido processo legal (art. 5º, LIV), também
conhecido como due process of law. Nesse sentido, cumpre registrar que alguns
diplomas legais nacionais já prevêem expressamente a respeito da razoabilidade,
como é o caso do artigo 111, da Constituição do Estado de São Paulo, bem como a
Lei 9.784/99, artigo 2º.
Por certo, sua inquestionável relevância, faz com que o
referido princípio seja estudado e analisado em todos os ramos do direito,
especialmente no ato judicial que concede a antecipação da tutela, ao qual
passamos a abordagem das acepções jurídicas assumidas pela razoabilidade no que
concerne às decisões que antecipam o mérito causae.
Em razão da sua vasta utilização nos mais variados campos do
direito, a razoabilidade comporta um elemento que a caracteriza, qual seja, a
SUBJETIVIDADE. Partindo dessa premissa, prelecionamos 3(três) acepções, que por
sua vez permitirão a análise do referido princípio à luz da concessão da tutela
antecipada, cinge-se destacá-los: A utilização como diretriz (da relação das
normas gerais com as individualidades do caso concreto), da razoabilidade como
diretriz que exige uma vinculação das normas jurídicas com o mundo ao qual
fazem referência, ou ainda, da razoabilidade como diretriz, ao qual exige a
relação de equivalência entre duas grandezas.
Face às acepções jurídicas assumidas pelo princípio da
razoabilidade, que aliada ao intuito de tornar o processo mais célere para as
partes, encontramos a aplicação da razoabilidade na concessão da tutela
antecipada, o que vêm a reforçá-la como instrumentos de alta relevância social,
que sem embargo algum contribui para o aperfeiçoamento da tutela jurisdicional.
Muito embora, em sede de tutela antecipada o juiz realize
uma cognição superficial, o objeto de seu exame fica adstrito aos fatos e
fundamentos jurídicos deduzidos pelo autor e às provas que ele unilateralmente
produza com a petição inicial. Dessa maneira, o magistrado dependerá (além
daqueles meios previstos na lei), de elementos interiores, de estados de
consciência e não só da relação jurídica.
Com base nas afirmações acima, passemos a adequação da
razoabilidade frente aos requisitos genéricos previstos no caput do artigo 273
(CPC) para a concessão da tutela antecipada.
De fato, no que se refere ao juízo de verossimilhança, o
mesmo se pauta na probabilidade do direito afirmado a parte requerente da
medida, o que nos permite dizer que a verossimilhança vem a ser um grau de
convencimento superior à possibilidade e inferior à probabilidade.
Muito embora, a lei processual (artigo 273 CPC) tenha
vinculado o convencimento da verossimilhança da alegação à prova inequívoca,
podemos identificar que a probabilidade em sede de verossimilhança não
significa, de forma alguma, um grau mínimo da provável realidade da alegação.
Ao contrário.
Dessa maneira, em se tratando de antecipação de tutela, o
grau de probabilidade decorrerá da própria prova inequívoca, e esta há de ser
intensa, capaz de induzir a identificação plena entre probabilidade e
verossimilhança, e justificar o deferimento da medida antecipatória.
Neste diapasão, o Professor Dinamarco, ressalta, a
contradição terminológica verificada no condicionamento de antecipação da
tutela à existência de prova inequívoca suficiente para que o juiz se convença
da verossimilhança da alegação, e menciona: "A dar passo ao sentido
literal do texto, seria difícil interpretá-lo satisfatoriamente porque prova
inequívoca é prova tão robusta que não permite equívocos ou dúvidas, infundindo
no espírito do juiz o sentimento de certeza e não mera verossimilhança.
Convencer-se da verossimilhança, ao contrário, não poderia significar mais do
que imbuir-se do sentimento de que a realidade fática pode ser como a descreve
o autor. Aproximadas as duas locuções formalmente contraditórias contidas no
art. 273 do Código de Processo Civil (prova inequívoca e convencer-se da
verossimilhança), chega-se ao conceito de probabilidade, portador de maior
segurança do que a mera verossimilhança (g.n)".
Dessa forma é que o magistrado, para alcançar esse grau de
convicção acerca da probabilidade, necessita proceder a uma instrução, embora
incompleta e com cognição sumária. Assim na formação do juízo da
verossimilhança, o julgador deverá observar a chamada lógica do razoável, neste
tipo de raciocínio o julgador é induzido a formar seu convencimento por meio da
experiência concreta dos problemas humanos numa dimensão axiológica,
determinada a partir de valores numa relação de metas e objetivos, que o faz
por meio da razoabilidade.
Podemos notar que tal forma de raciocínio, se posiciona
contra o próprio raciocínio da lógica formal dedutiva, nesse sentido, vale
transcrever os ensinamentos trazidos por Coelho acerca da lógica jurídica:
"Enquanto o pensamento racional puro da lógica formal tem a natureza
meramente explicativa de conexões entre idéias, entre causa e efeitos, a lógica
do razoável tem por objetivos problemas humanos, de natureza jurídica e
política, e deve, por isso, compreender ou entender sentidos e conexões de significados,
operando com valores e estabelecendo finalidades e propósitos."
Em sede de antecipação da tutela, o magistrado no exame da
valoração da prova, muitas vezes faz uso da lógica do razoável, para investigar
a existência da prova inequívoca e verossimilhança demonstrada no processo,
muitas vezes, o faz para investigar as relações de congruência, equilíbrio e
equidade, justamente as acepções jurídicas assumidas pela razoabilidade ao qual
pretendemos analisar, frente à concessão da tutela antecipada.
Com isso, no exame da prova o julgador é submetido algumas
indagações, a exemplo dos valores apropriados à determinada realidade, ou seja,
quais os valores que se demonstram congruentes entre a realidade social e os
valores envolvidos num dado caso concreto. E ainda, quais os fins compatíveis
com os valores que se pretende prestigiar, ou melhor, se a medida adotada se
adequará aos fins pretendidos, como no caso da antecipação da tutela.
Valemo-nos dizer que, os requisitos da prova inequívoca e
verossimilhança não se verificam por meio de um cálculo matemático que
proporcione medidas indiscutíveis para todos os casos de antecipação de tutela,
mas de aplicação ao caso concreto, não se tratando de grandezas
quantitativamente mensuráveis, mas do resultado de valorações.
Nesse sentido, transcrevemos o exemplo suscitado pelo
Professor Antonio Cláudio da Costa Machado: “Imaginem o quadro de uma ação
indenizatória oriunda de um acidente de trânsito envolvendo um industrial e sua
“Mercedes” último tipo, e um camelô e seu fusca 68. Se o autor da ação
conseguir colher prova documental e pericial robusta, num caso trágico
vastamente explorado pela imprensa que lhe permita preencher a rigorosa
exigência do fumus boni iuris do caput do artigo 273, a tutela antecipatória na
hipótese imaginada só poderá ser deferida em favor do camelô contra o
industrial, se este for supostamente o responsável pelo acidente, e nunca do
industrial contra o camelô, porque apenas o hipossuficiente econômico estará
apto a demonstrar que a demora para a outorga de um provimento definitivo
poderá acarretar-lhe um dano irreparável ou de difícil reparação (representado,
por exemplo, pela falta de provisão do mérito para a subsistência da família
privada do seu chefe e/ou do instrumento (de trabalho mais importante durante o
curso do processo)”.
No caso descrito, o julgador além de realizar o exame da
ponderação dos valores envolvidos no caso, utiliza-se da razoabilidade, cujo
elemento preponderante eleito pelo magistrado para dissipar a dúvida na cognição
sumária advém da hipossuficiência econômica do camelô se supostamente for
responsável pelo acidente.
Nesse mérito, enfatizamos o entendimento do Professor Ávila
mencionado no Capítulo anterior: (...) “As regras não precisam nem podem ser
objeto de ponderação; os princípios precisam e devem ser ponderados. As regras
instituem deveres definitivos, independentes das possibilidades fáticas e
normativas; os princípios instituem deveres preliminares, dependentes das
possibilidades fáticas e normativas (...)”.
Para tanto, chamamos a atenção para a interpretação dos
conceitos jurídicos indeterminados, trazidos pelo legislador processual de 94,
no que se refere às expressões prova inequívoca e verossimilhança das
alegações. Com certa razão, o legislador processual, trazendo tais expressões
para a norma jurídica, permite que a norma, permaneça, ao ser aplicada, sempre
atual e correspondente aos anseios da sociedade nos vários momentos históricos
em que a lei é interpretada e aplicada, explicamos:
Quando o juiz é chamado pelo jurisdicionado a aplicar a lei
e constatado que esta contenha aquelas “incertezas” semânticas, o juiz se
depara com um obstáculo que deve ser transposto com as técnicas de
interpretação legal: como preencher o conceito juridicamente indeterminado, daí
porque, o magistrado agirá com certa margem de discricionariedade na concessão
da tutela antecipada.
Transcrevemos trecho de um acórdão, que por sua vez,
reconhece a existência de poder discricionário em sede de antecipação da
tutela:
TUTELA ANTECIPATÓRIA DISCRICIONARIEDADE DO JUIZ PARA
CONCESSÃO -NECESSIDADE, PORÉM, DE PROVA INEQUÍVOCA DE SITUAÇÃO EMERGENCIAL E
RESPEITO AOPOSTULADO DO DUE PROCESS OF LAW, COMO CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA –
INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 273 DO CPC -Em trato de concessão de tutela antecipada
de provimento jurisdicional, mister se faz que o Juiz, dentro da esfera de sua
discricionariedade judicial, proceda a prudente e cuidadosa análise, porquanto
pode haver situação emergencial que o reclame, desde que haja prova inequívoca
do alegado e se convença de sua verossimilhança.g.n Na dicção do artigo 273 do
CPC, não se pode perder de vista que,de outro lado, os postulados do due
process of law , dos quais o princípio do contraditório e da ampla defesa são
corolários, hão de ser observados”. (1º TAC - 1ª Câm.; AI nº
689.493-7-Presidente Venceslau; Rel. Juiz Ademir de Carvalho Benedito; j.
31.10.1996; v.u.) RT 736/256.BAASP, 2087/74-m, de 28.12.1998.
Nesse sentido, Professor Rogério Ives Braghittoni, cita
Kazuo Watanabe, para justificar o entendimento pela existência de poder
discricionário na concessão da tutela antecipada, entende Kazuo que se há
discricionariedade a mesma existe nas obrigações de fazer e não fazer ora
previstas na tutela específica do artigo 461 do CPC.
A norma em apreço trata de “medidas necessárias” aplicadas
pelo juiz para obtenção do resultado prático equivalente, e tais escolhas
situam-se na esfera de poder discricionário, que se equipararia à
indeterminação do conceito trazido no caput do artigo 273 do CPC.
E falamos mais, a interpretação dos conceitos indeterminados
pelo magistrado, o obrigará à utilização de métodos intuitivos, racionais,
lógicos e razoáveis, para a investigação das mais variadas situações fáticas
imprevisíveis, ora surgidas ao longo do desenvolvimento da sociedade,
especialmente no tocante a antecipação da tutela.
Há quem diga que o preenchimento de conceitos jurídicos
indeterminados pelo magistrado não se confunde com discricionariedade. Também
não se diga não estarem intimamente ligados, uma vez que, à medida que o
magistrado o interpreta a norma jurídica de conceito indeterminado, o faz com
base não só no fato-causa, como também, existe para o fato-efeito, no qual
reside à discricionariedade, e tal poder jurisdicional se pauta na própria
razoabilidade.
Tão lógico raciocinarmos que o magistrado na busca de
elementos dentro do sistema para o preenchimento de conceitos jurídicos
indeterminados também se vale da DISCRICIONARIEDADE E RAZOABILIDADE, como
critérios modernos de valoração da prova e consecução da tão almejada
efetividade e celeridade processual. E podemos dizer ainda que, a razoabilidade
nesse contexto, é aplicada como forma de restrição desse poder, daí importamos
chamar de um poder discricionário limitado pela própria lei, aqui no sentido de
guardar observância ao devido processo legal, no qual a razoabilidade se acha
implicitamente.
Para esse fim, acreditamos que o magistrado cruzará,
finalmente, a linha entre o Direito e a Ética, pois, esta é o fundamento
daquele.
A vista do exposto, a razoabilidade vem a oferecer ao
operador do direito uma substância lógica e coerente do sistema jurídico,
implicando na determinação das prioridades e finalidades definidas passíveis de
serem compreendidas e ordenadas, reforçando o movimento, atualização e
aperfeiçoamento do próprio Poder Judiciário e Estado Democrático de Direito.
O princípio da razoabilidade, de um lado nos revela como
instrumento de uma intensa produtividade para o desenvolvimento de uma
interpretação progressista do texto constitucional, inibindo as decisões
arbitrárias perpetradas pelo Poder Público.
Por outro, apreende-se a razoabilidade no sentido de ser
utilizada pelo operador do Direito, como forma de buscar a perfeita adequação,
a idoneidade, a lógica e a prudência e a moderação no ato de interpretar as
normas, buscando extirpar distorções, anomalias e absurdos decorrentes do
arbítrio, afastando qualquer abuso do poder do magistrado.
Referência Bibliográfica
1. BARROSO Luiz Roberto – Interpretação e aplicação da
constituição 1ª edição, São Paulo, Ed. Saraiva, 1996.
2. ÁVILA, Humberto, in Teoria dos Princípios (da definição á
aplicação dos princípios jurídicos), 4ª Edição, 2ª Tiragem, Editora Malheiros,
2004
3. MACHADO, Costa Antônio Cláudio in Tutela antecipada, São
Paulo, Juarez de Oliveira, 3ª edição, 1999.
4. KAFKA, Franz. Carta ao Pai, in prefácio, Ed. Companhia
das Letras, 1998
5. CALAMANDREI “apud” MACHADO, Costa Antônio Cláudio, in A
reforma do processo civil interpretada, São Paulo, Saraiva, 2ª edição, 1996,
pág. 27
6. DINAMARCO, Cândido Rangel, in A reforma do código de
processo civil, São Paulo, Editora Malheiros, 2000.
7. ULHOA COELHO, Fábio. Roteiro de lógica jurídica. 3ª ed.,
São Paulo, Ed. Max Limonad, 1997, p. 100-101.
8. Idem ao item n. º 3
9. Idem ao item n. º 2
10. BRAGHITTONI, Rogério Ives, in O Princípio do
Contraditório no Processo “Doutrina e Prática”,Ed. Forense Universitária,1ª
Edição, 2001