O que favelas e cracolândias têm em comum? Ambas sofrem do
mesmo mal: são definidas usualmente por meio de estereótipos e transformadas em
bodes expiatórios, em escudos contra a assunção de responsabilidades diante de
problemas sociais que não se quer enfrentar. Mais do que isso, visões
preconceituosas das favelas e cracolândias acabam autorizando formas
desrespeitosas e truculentas de lidar com as pessoas que habitam esses espaços.
No caso das favelas e periferias das grandes cidades, a
imagem corrente é de moradias inacabadas e condições urbanas precárias, onde
prevalecem a miséria, a ilegalidade e a violência. Enxergar as favelas apenas
dessa perspectiva significa ignorar o universo social e cultural produzido por
seus moradores, a vida pulsante que corre diariamente por suas ruas e vielas, a
rede de sociabilidade e solidariedade ali construída. Significa ignorar uma
história de organizações e de lutas, e tudo o que os moradores de favelas
representaram e representam para a construção do país.
Com relação às cracolândias, existe a crença generalizada de
que são espaços povoados por “zumbis”, por pessoas de comportamento
imprevisível, violento e repugnante, por autômatos guiados unicamente pelo
desejo da droga, sem capacidade de discernimento. No entanto, basta ter a
coragem de visitar uma cracolândia real, como fizemos numa das favelas do
Complexo da Maré, para enxergar sujeitos usando crack, sim, ingerindo bebidas
alcoólicas e eventualmente brigando, mas também compartilhando alimento, afeto
e solidariedade. Homens e mulheres cujas vidas viraram de cabeça para baixo num
piscar de olhos: perda de emprego, desestruturação familiar, abandono. E que
encontraram nas ruas, entre os usuários de crack, o apoio necessário para
sobreviver. Ao contrário do que se acredita comumente, muitos desses indivíduos
não chegaram ali por causa do crack, e sim por numerosos outros motivos
pessoais, econômicos e sociais. O crack é o que hoje lhes proporciona os poucos
momentos de prazer que ainda têm na vida.
Vimos na cracolândia algumas dezenas de pessoas miseráveis,
morando em minibarracos improvisados e cercados de montes de lixo, sem a
atenção dos mais elementares serviços públicos. Mas, mesmo assim, capazes de
construir arranjos de convivência e de auxílio mútuo, de refletir sobre suas
histórias e sua situação atual, de tomar decisões e de formular demandas.
Nada disso implica negar a existência dos graves problemas
decorrentes do uso abusivo do crack. Mas não é com estereótipos que se poderá
enfrentá-los adequadamente. Pelo contrário, as imagens estereotipadas servem
ora a uma estratégia avestruz para sequer enxergá-los, ora à aceitação de
“soluções” truculentas, por trás das quais se escondem muitas vezes interesses
pecuniários escusos, como os de certas “comunidades terapêuticas” a quem
favorece enormemente a política de internação compulsória financiada pelos
cofres públicos.
O abandono a que as favelas foram historicamente relegadas é
o mesmo que hoje se observa em relação às chamadas “cracolândias”. É a
tendência a lidar com esses espaços por meio de rótulos preconcebidos que geram
medo, desconfiança e desrespeito. Se a visão da favela como antro de bandidos
justificou por décadas ações violentas e ilegais da polícia, no lugar de
políticas públicas para integrar esses espaços ao tecido urbano, a imagem da
cracolândia como antro de “zumbis” vem dando força a medidas também violentas e
discriminatórias, em vez da assistência devida ao atendimento das reais
necessidades dos usuários.
Carl Hart é professor da Universidade de Columbia, Eliana
Sousa Silva é diretora da ONG Redes da Maré, Julita Lemgruber é socióloga e
coordenadora do Cesec/Ucam
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